Publicado por: Estudo do Meio | Março 19, 2009

A SIGNIFICAÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO

Quarta versão 07/2003
Elizabeth CastellãoMartins

“O fato de me perceber no mundo, com o
mundo e com os outros me põe numa posi-
cão em face do mundo que não é a de quem
tem nada a ver com ele”.
(Paulo Freire)
Viver, lembrar e aprender

As visitas à família da minha nora despertam-me lembranças preciosas. A minha infância, adolescência e parte da minha juventude vivi na mesma rua da família. Hoje a rua é bem mais longa, diferente e reflete a ampliação territorial e demográfica do bairro. A casa da família localiza-se no mesmo lugar onde eu aprendi a pescar, a cultivar o silêncio e comunicar-me com o olhar – meu pai foi o professor. O processo de pescar com a espera do peixinho beliscar e seu produto foi uma aprendizagem de uso dos sentidos: o cheiro das iscas e da água, o sentir das puxadas, ouvir o silêncio, captar os movimentos e transmiti-los com o olhar, entender olhares, o prazer de preparar e saborear a farofinha com os pequenos peixes. Entendo mais, agora, a origem do meu prazer e tietagem pelos trabalhos de Estudo do Meio.
Os moleques do entorno nadavam nesse rio e muitos dos seus trechos eram perigosos.
No início da rua, na esquina do mesmo lado da minha casa, uma senhora vendia caramelos –galinhas, galinhos, arvorezinhas, chupetas – eram procurados pela criançada na saída do Grupo Escolar. Do outro lado dessa esquina morava Dona Elvira, eu admirava suas filhas: Odete e Diva. Eram bem mais velhas que a criançada da rua e muito aplicadas nos estudos. Tenho até hoje, por incrível que pareça, um caderno de Ciências da Diva, adorava o desenho do corpo humano, e seus músculos, nele registrado.
As duas foram importantes na minha formação acadêmica. Odete vibrou quando passei no vestibular. Às seis horas da manhã, de um belo dia, gritava no meu portão com o jornal na mão:
– Você passou, você passou!
Dona Elvira tinha uma loja de calçados e brincávamos à frente dela, todo o entardecer, quando as mães se reuniam para bater papo. A casa delas era grande, bem antiga, muita madeira e um quintal com muitas árvores frutíferas.
Por vezes, o fantasma do braço do rio Tietê vem também visitar sua antiga moradia. Suas visitas não são tão bem recebidas quanto as minhas. Lembro-me, diante dessa situação, dos trabalhos da geógrafa Odete Carvalho de Lima Seabra sobre as enchentes na cidade de São Paulo. Aquela mesma que morava na primeira casa da rua e a frente da sua casa dava para a avenida principal do bairro, atualmente com outro nome e muito movimentada. Sobrou pouco da casa da Odete e da sua família.
As lembranças da rua ampliam-se para todo o bairro – Bairro do Limão. Casei, mudei, voltei ao mesmo bairro. Não conheço mais as pessoas mas, muitas me conhecem:
-Você é a filha do seu Jorge, grande sujeito, falador…
Escuto sempre essas falas carinhosas e me dou conta que faço parte da história do Bairro. Tenho referências e sou referência. Sou testemunha de um tempo e simbolizo muito do que não existe mais fisicamente.
Nas minhas atuais visitas procuro minhas marcas. Não existem mais, é outra rua, está tão diferente. Mas, o diferente de agora, deixa mais forte minhas lembranças: aqui morava fulano, ali beltrano, acolá sicrano. Tudo existe no diferente, é a história da minha infância e eu a encontro nesse diferente. Sou documento de um tempo e apesar de não encontrar minhas marcas no físico, elas são concretas nas minhas lembranças.
O antes está nas minhas lembranças e essas representam elos das transformações ocorridas. O passado está presente nas lembranças e as minhas lembranças são parte das páginas da história local.
As pessoas com as quais convivi grande parte da minha história são elos também e esses elos não podem se perder – continuarão nos registros quando nossos corpos se forem. Certamente esse grupo de pessoas contam e representam um momento da história do Bairro, de um tempo e espaço determinado. O conjunto de referências representa as marcas importantes para um ou mais sujeitos desse local. Assim, lembrar é refazer, reconstruir, repensar com novas imagens e idéias e a lembrança é uma imagem construída com todos os materiais que estão, no presente, a nossa disposição.
O movimento com o encontro da minha história de vida me fascina e é necessário para saber quem sou e o que represento. Podemos compreender com maior profundidade nossas vivências, se relacionarmos esse movimento com o conceito de Processo de Individuação desenvolvido por Jung e que implica um diálogo com símbolos que permeiam nossa existência. Compreendendo-os e elaborando-os ampliamos nossa consciência a respeito de como fomos nos transformando e proporcionando-nos um sentido de inteireza e consistência.
“Como foi interessante voltar naquele local que há anos eu não via. Quanta diferença daquele tempo para cá. O local está irreconhecível e a isso se dá o nome de urbanização. Onde estão os sítios, as hortas dos japoneses que produziam verduras fresquinhas? Deu-se lugar a um conjunto de apartamentos. Onde antes se via o verde, a natureza, hoje se vê uma selva de pedras. Na grande entrada do sítio ficou apenas um pequenino espaço entre as construções.
Que pena! Sinto que momentos bons da minha infância começam a se perder. As brincadeiras na casa de bonecas, na piscina, o cheiro de mato, as ameixas colhidas no pé. Tudo isso começa a se perder nessa “urbanização” que se instalou.
Uma coisa eu sei, por mais que o processo tente apagar tudo isso, ficará sempre muito vivo em minha memória”. (Adriana Aparecida Bonfim Abla, participante do Estudo do Meio em Guarulhos, 30/08/02)

Um símbolo pode ser uma idéia, uma emoção, um acontecimento ou um objeto que, além de seu significado literal, possui outros significados ocultos e até mesmo inconscientes. “O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além de seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga desconhecida e oculta para nós” (Jung, 1964.p.20).
“O Processo de Individuação, segundo Jung, é regulado pelo Self, que tem uma tendência inata de buscar sua unidade e sua totalidade, o que vai realizando sempre de forma gradativa e parcial. Buscar o si-mesmo é um fim e um princípio, é um movimento que surge como um acordo entre a semente de totalidade que existe em cada um de nós e o mundo exterior… A melhor análise é a vida: a alma humana se constitui e se conhece na experiência, tal como ela é vivida com todas as suas implicações. Percebi que o encontro com o mundo interior, habitado por diversas imagens que compactam nossas experiências, não só possibilitava a realização de uma pesquisa, mas favorecia a produção de novos significados para experiências vividas, bem como uma reconfiguração psíquica. Essa posição de cooperação que assume o Ego, centro da consciência, com a personalidade total, o Self, proporciona um sentido de inteireza e uma possibilidade de existência mais profunda” (Ecleide Furlanetto, 1977).

“Voltei ao texto do Paulo Freire que fala da infância… esse trabalho me fez lembrar da minha infância. Lembrei da Granja onde eu brincava…Depois de uns tempos, eu passei até a trabalhar na granja…O que me marcou foi entrar naquele lugar e lembrar da minha infância. Naquele lugar, a gente se sente no interior. O ritmo é completamente diferente do ritmo daqui. As pessoas têm um jeito especial, tranqüilo. Achei muito gostoso ficar conversando com as pessoas, perguntando o que elas acham de tudo aquilo, se eles gostam, se não gostam, como funciona. Elas têm ainda aquele viver tranqüilo, sossegado. Achei bom”. (Alice. Impressões e comentários sobre a saída a campo. Guarulhos, 05/07/02).
O conteúdo da fala de cada um, original e única, pois cada ser tem suas próprias marcas, é partilhado por aqueles que fazem parte da cultura na qual cada Self individual está inserido. O discurso de um é de todos. A criação tem a essência coletiva.
Na análise de entrevistas e do resgate da memória e no desvelar dos símbolos que estruturam esse processo percebe-se que o sujeito para aprender necessita pensar, identificar, classificar, observar, aplicar, relacionar, mas necessita também de fascinar-se, sentir, sonhar, imaginar, vivenciar, indiscriminar-se, significar, re-significar, elaborar, ler indícios. A formação do sujeito não acontece somente no plano cognitivo, lógico, mas também no plano simbólico que organiza a vida afetiva e as significações, nos permite pôr em relação, nos diferenciarmos, tornar-nos únicos, darmos conta de nossos sonhos, de nossos erros, de nossas lembranças e de nossos mitos.
“Achei muito interessante esse curso, pois do“nada”construímos juntos o que podemos chamar de identidade de um grupo e em conseqüência,da cidade.Como foi importante perceber os pontos que marcam cada um do grupo e isso nos faz parar para pensar, que para o aluno só existe o conhecimento quando tem o envolvimento. E também o quanto podemos construir num grupo, onde cada um tem uma vivência diferente” (Avaliação de participante do Estudo do Meio em Guarulhos, 30/08/02)
.No espaço onde se articula o mundo lógico e o simbólico é que nascem os movimentos que nos levam a buscar o conhecimento para preencher os espaços vazios. Ao se perceber os símbolos presentes numa realidade, ao entendê-los, explicá-los, compreendê-los e elaborá-los, caminhamos para a produção de conhecimentos.

Eu gostaria de ter ido…

In loco
Cursos…
Infinitivo e presente
A inteireza se estabelece
Numa participação de todas as nossas dimensões
O físico
O mental
O psíquico
O espiritual
In loco
Fazer parte
Possibilitar-se conhecer
Feiúras e belezas
O espetacular e o bizarro
Os laços
Os elos
Cortes e rupturas enlaçados a começos e origens

In loco
Penetrar e deixar-se penetrar

No “in loco”
Permitir-se conhecer
E produzir conhecimento
– Nesse momento teria sido Guarulhos.
(Maria Tereza Vítor César participante do Estudo
do Meio em Guarulhos, 30/08/02).

Portanto, produzir cultura é um processo que ocorre a partir da constante educação de si próprio, junto ao coletivo, e não da mera transmissão passiva de conhecimentos. Construímos conscientemente, ou até mesmo inconscientemente, um território individual e riquíssimo. Abrir as fronteiras desse território, construir formas de relações com o outro e, conseqüentemente transformar, é uma vivência muito delicada. Educar é formar para a cidadania e, paradoxalmente, só através do respeito à individualidade é que se chega ao respeito social, à solidariedade e à cooperação. E só pode ocorrer em clima de reconhecimento, segurança e afeto.

“Fiquei doente no dia da saída. Queria dizer que está super interessante, porque cada um está contando um pedacinho e eu estou montando uma imagem na minha cabeça” (Ângela. Impressões e comentários sobre a saída a campo. Guarulhos 05/07/02)

“O Estudo do Meio ajudou a perceber algumas relações que chegam todos os dias na escola e não conseguimos perceber, a realidade dos alunos, e como o meio interfere nessas relações. Através deste estudo, poderemos adequar as necessidades primordiais dos alunos, dando significado maior aos conteúdos a serem trabalhados, sempre levando em conta o ponto de partida da clientela para avançarmos os conhecimentos” (Iracema R. da Silva. Guarulhos, 30/08/02).

“Os sujeitos da História podem ser personagens que desempenham ações individuais ou consideradas como heróicas, de poder de decisão política de autoridades, como reis, rainhas e rebeldes. A História pode ser estudada, assim, como sendo dependente do destino de poucos homens, de ações isoladas e de vontades individuais de poderosos, em que pouco se percebe a dimensão das ações coletivas, das lutas por mudanças ou do poder exercido por grupos sociais em favor das permanências nos costumes ou nas divisões do trabalho.
O sujeito histórico pode ser entendido, por sua vez, como sendo os agentes de ação social, que se tornam significativos para estudos históricos escolhidos com fins didáticos, sendo eles indivíduos, grupos ou classes sociais. Podem ser, assim, todos aqueles que, localizados em contextos históricos, exprimem suas especificidades e características, sendo líderes de lutas para transformações (ou permanências) mais amplas ou de situações mais cotidianas, que atuam em grupo, ou isoladamente, e que produzem para si ou para uma coletividade. Podem ser trabalhadores, patrões, escravos, reis, camponeses, políticos, prisioneiros, crianças, mulheres, religiosos, velhos, partidos políticos, etc.” (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998).
O homem é um sujeito histórico e recordar é um ato coletivo, que está ligado a um contexto social e a um tempo que engloba uma construção também coletiva. Recordar é conferir sentido às imagens do tempo presente, onde estão encravados tempos diferentes e distantes. Mas, a imaginação e a razão criadora reanimam e enriquecem a memória quando dão vida às imagens, recuperando seus significados ou resignificando-os, de acordo com a contemporaneidade e seu processo de transformação.

E O SUJEITO CONNSTITUI O TEMPO

“Minha mãe nasceu no dia 30/11/1962.Co-
nheceu meu pai…5 anos depois se casou
com ele no dia 18/12/1986 e me tiveram no
dia 01/10/1987 a aí começou minha vida.”
(Adriana. A História de minha mãe in Geo-
ciências e Formação Continuada-Subproje-
tos desenvolvidos nas escolas da rede públi-
ca)

Marcos e marcas

Ao falar das experiências vividas, estamos constituindo o tempo, pois “o tempo somente é porque algo acontece, e onde algo acontece o tempo está” “… a cada novo acontecer as coisas preexistentes mudam o seu conteúdo e mudam também a sua significação”(Santos, 1997, p.115).
Os homens criaram e criam os conceitos para se apropriarem da realidade e organizá-la. Todo o conceito não é isolado, faz parte de uma rede de conceitos que formam os princípios básicos à organização conceitual de um campo de conhecimento, nem sempre explícitos ou suficientes. Idéias como a de tempo histórico na História são princípios que perpassam todos os conteúdos dessa disciplina, cujo domínio é necessário para que noções mais específicas sejam compreendidas.
A escola é o espaço, por excelência, que deve atuar para a produção das identidades sócio-culturais dos seus educandos na perspectiva da cidadania e para essa constituição é necessário o domínio de categorias e conceitos que possibilitem compreender e intervir no mundo.
A concepção de tempo apresenta-se como articuladora dos conhecimentos históricos a serem construídos nos primeiros anos escolares. Normalmente, a organização dos conhecimentos históricos para as séries iniciais contribui para consagrar uma verdade, naturalizar uma narrativa, descartando a multiplicidade e a vida das pessoas que a estudam. A valorização de um processo de ensino, onde a idéia de que este ensino deva partir do próximo para o distante, do simples para o complexo, do concreto para o abstrato e assim estudar a família, a escola, o bairro, o município, o estado, o país e o mundo de forma crescente e segmentada, corre o perigo da simplificação exagerada, em que o estudo da realidade não ultrapassa o senso comum e os conteúdos impedem a reflexão sobre o processo de recriação dos conceitos imprescindíveis à constituição da cidadania.
Ensinar e aprender história traz a possibilidade do sujeito situar-se no tempo e no espaço em que vive, conhecer aspectos do passado tornando visíveis diferentes situações, grupos e indivíduos e principalmente, participar da elaboração de seu projeto de futuro.
“Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de supremo mandatário da nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais” (Luís Inácio Lula da Silva. Trecho do discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/03).
A proposta, como a do Estudo do Meio, de se articular as histórias de vida dos alunos e dos professores com a história social, destaca a importância da memória individual e da social que se materializa nos diferentes espaços da cidade: ruas, prédios, museus, aterros, diques, pontes, desmatamentos, praças, monumentos, etc e na contribuição da constituição das identidades que variam nas diferentes épocas: a criança, o adolescente, a adolescente, o adulto, a adulta, o velho, a velha, o menino, a menina, o branco, a branca, o negro, a negra, o índio, a índia.
A construção das noções de temporalidade, necessárias para o ensino de história, que considera as diferentes concepções de tempo produzidas culturalmente, exige um longo processo e de acordo com sua complexidade envolve toda a escolaridade. Construir noções temporais básicas para localizar-se e organizar-se no tempo histórico, diferenciar e relacionar temporalidades, identificar referências e medições temporais, perceber a existência de diferentes ritmos e épocas e compreender que tempo é uma convenção social é primordial no ensino fundamental.
O Estudo do Meio, método interdisciplinar de pesquisa e ensino, que supera o isolamento das disciplinas, permite a implementação da construção do conceito de tempo ao abordar, por exemplo, a temática referente ao município e tratar da noção de duração, sucessão, simultaneidade, polemizando a discussão sobre os povos que se instalaram nos diferentes momentos históricos, porque se instalaram, como viviam, de onde vieram, suas atividades econômicas em diferentes períodos, suas construções e utilização, a confrontação dessas informações com a história de outros municípios, a caracterização de períodos específicos, em que as experiências individuais possam interagir com a história coletiva.
“O Estudo do Meio é uma metodologia de trabalho que nos possibilita conhecer e desvelar as relações entre pessoas e suas influências com a história da cidade. Enquanto educadores conhecer essa proposta nos possibilitou ampliar nossos conhecimentos e refletir sobre nossa prática em sala de aula. A questão é como articularmos o Estudo do Meio com as áreas de conhecimento? Durante a formação iniciamos essa discussão mas, se faz necessário aprofundarmos o estudo a respeito da interdisciplinaridade e o Estudo do Meio e a relação com o Projeto Político Pedagógico” (Clarice S. Lacerda, participante do Estudo do Meio em Guarulhos, 30/08/02).
As linhas de tempo podem ser organizadas ou referenciadas através de acontecimentos significativos da região estudada, com as marcas históricas ressaltadas das observações dos participantes, com a história dos familiares, com a pesquisa de várias outras fontes, como jornais, livros, depoimentos, documentos familiares, fotos, desenhos, gravuras etc. Esse trabalho requer dos alunos uma compreensão do tempo histórico, construindo-se processualmente com a leitura de suas hipóteses sobre o que consideram antigo, velho, passado recente, passado remoto, período histórico e com as situações didáticas que interagem com as convenções a respeito do tempo ao longo da história, como anos, décadas, séculos, milênios, períodos, eras.
A equipe multidisciplinar do Laboratório de Pesquisa em Ciências Humanas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (LAPECH/FEUSP) registrou um belo exemplo de entrevista com Dona Sebastiana Vicente de Gusmão, 89 anos, num Estudo do Meio realizado na região de São Sebastião. A entrevista, estruturada na conversa de um dos grupos participantes com Dona Sebastiana, permite colocarmos os fatos numa linha de tempo, estabelecermos relações com esses fatos e reconstruirmos a história da região:
“Nasci na Praia de Guaeca (lado que vai para Santos), cresci e quando tive os filhos compramos aqui (Barequeçaba) e viemos para cá. Criamos eles aqui. Meu avô não era brasileiro, era alemão, trabalhou no Rio. Meu pai morava em Parati. Meu avô veio, conheceu Dona Luiza (mãe de meu pai). Não foi mais para lá. Minha avó (parte de mãe) era daqui (São Sebastião). De Angra foi para Parati. Quando era solteira morava com a família na Praia de Guaeca. Plantavam mandioca, arroz. Vendiam Feijão e mandioca. Pescavam apenas para o consumo. Caçavam veado, paca.
Tenho 3 netas moças, 21 bisnetos/netos. Não é brincadeira. Filhas moram por aqui, só uma em Caraguá. Meu marido, João, morreu há 14 anos, trabalhava no bananal.
Nós estamos aqui de passagem, esta vida é passageira. Sou da Assembléia de Deus a 25 anos . Nasci na Igreja Católica. Jesus me chamou e fui para a Assembléia de Deus. Vou sempre na Igreja, circulo da Igreja. Só minha filha, genro e eu somos da Igreja. As netas vão para a Igreja Católica.
Minha filha, uma não trabalha; minha nora é merendeira da escola. Os filhos, uma é professora, outra está em Boiçucanga.
Os doentes usam o Posto de Saúde. Não uso Posto, não tomo remédio. Tem hospital público e particular. De primeiro não tinha hospital.
Quando vim para cá era só mato, depois veio o pessoal e foi construindo. Os filhos foram crescendo e um foi para São Paulo (Vila Leopoldina). Mas faz um ano que não sei o paradeiro. Quando vim morar aqui era melhor, não tinha tanta gente. Em Guaeca tinha muito lugar de plantação: milho, feijão, tinha roda de farinha, forno (mandioca), prensa (tipiti), o caldo de massa ia correndo, aí outro dia a massa tava sequinha, peneirava, ia passando e no ponto ia misturando. Agora é quilo, antes era litro. Levava para a cidade vender, carregava nas costas, na estrada sem asfalto. Agora é melhor para mim, não tem que trabalhar, 8 de setembro faço 90 anos.
Em Guaeca o mar entrava para a barra. Ia na cidade fazer compras, o mar bravo entrava e não se podia passar.
Minha avó e um tio meu foram escravos. Tinha escravidão antigamente. Meu tio pagou a escravidão dele.
Tinha uma pedra grande lá, que tinha uma serpente grande (onde as pessoas iam pescar), era ruim. O mar bravo, vento forte, os barcos vinham para terra e virava. Cobra grande comia tudo e só achavam os barcos virados. Agora é tudo moderno. Chamaram o padre que só vivia orando. O padre orou e a serpente foi embora para uma ilha longe, Alcatraz. No lugar agora existe uma ponte. A pedra ficou – a toca do bicho – e a cobra foi embora. A pedra tem uma água que corre e nunca seca. As pessoas levam vela e acendem. Contavam isso, né. O pessoal velho é que diziam – toca da serpente.
Trabalhava muito na roça, plantava mandioca, batata doce, mandioca doce, arroz (em casca) só para a família. Feijão vendia e farinha para quem encomendava. Caça pegava muito, matavam veadinho, paca na mata em Guaeca. Agora aqui não se pode mais.
Morar aqui é bom, não precisa ir na cidade para fazer compra. Tem o mercadinho que tem tudo. Facilita tudo.
Turistas, não conheço os novos. Alguns vêm aqui: os conhecidos, muitos já morreram. Tinha dois médicos bons. Era tudo com a gente. Batizou um neto meu. Os mais velhos morreram tudo. Esses são novos e eu não conheço. Os turistas são bons, quando chegam falam com a gente. Não tem pessoa ruim. Tem um sobrinho meu que tem quitanda e eles vão lá. Tem um turco muito bom, mora lá embaixo, às vezes põe dinheiro no meu bolso para “comer doce”.
Não vou para São Paulo; tenho as três filhas, uma em Caraguá.
A casa é toda de pilar, se fosse madeira tinha caído. Nós construímos a casa, antes era madeira do mato.
Não sei no que meu avô trabalhava. Meu pai trabalhava em roça, morava em Parati. Depois veio para cá e começou a trabalhar. Família do meu pai é toda de Angra e Parati. Minha família, de mãe, é que é daqui.
Meu tio era escravo. Minha madrinha, mulher dele, não gostava que contasse da escravidão porque eu chorava. O capataz (agora feitor) batia no escravo e a pessoa caía. Eu ficava magoada, triste. Era tio-avô. Minha avó era mais nova e quando nasceu acabou a escravidão, por isso não era escrava. Levava a comida na cintura para comer e trabalhar.
Quando viemos para cá, meu marido trabalhava em Santos. Eu ficava tomando conta das crianças enquanto ele trabalhava.” (Sebastiana Vicente de Gusmão, entrevista, 24 de junho de 1995, Barequeçaba-São Sebastião-SP).
Os educadores de Guarulhos, na vivênvia do Estudo do Meio, observaram e selecionaram impressões, situações marcantes pessoais e coletivas que constituíram os seus “marcos históricos” na construção de linhas de tempo sobre a história dos bairros de Guarulhos:

Linha de tempo elaborada pelo grupo de educadores do Bairro de
Haroldo Veloso – Guarulhos

………/_________________/_________________/_________________/……….
1970 1980 1990 2000 ?
   
-surgimento do -início da construção -expansão do -incertezas
bairro com do aeroporto Bairro -desapropriações
doação de terras -81: alojamento para -95: invasão
para construções funcionários das de terras
populares empresas responsáveis
Pela obra

Linha de tempo elaborada
 pelos grupo de educadores
-escadas abaixo do Bairro de Bela Vista-
do nível da rua Guarulhos

MARCO

……./_________/_________/_________/_________/__________/……………….
    
-não havia  -urbanização -comércio -população de
planejamento,  por ser baixos recur-
estrada de terra  próxima ao centro sos ocupa o
  vale, forman-
do a favela
-possivelmente
onde há a pra-
ça, poderia ser
uma chácara 
  

O conceito de tempo é uma conseqüência de nossa experiência no mundo.. É uma construção sócio-cultural e se apresenta de distintas formas nas diversas sociedades e modula a vida das pessoas de diferentes maneiras. Uma forma bastante simples de refletir com os alunos sobre o tempo é vivenciar situações que questionem o tempo quando necessitam de estimativas sobre idades de pessoas, prédios, animais, ruas, plantas e objetos.
As formas de viver, sentir e pensar o tempo não são homogêneas, nem iguais nas diferentes culturas que compartilham o mesmo tempo, por exemplo o índio na aldeia e o trabalhador na cidade. Existe sempre uma dimensão subjetiva , que não apenas as de caráter social e cultural, que define a relação de cada pessoa e de cada cultura com o tempo.
“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”- costumava dizer Ana Terra. Mas, entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha acontecido? Em que mês? Em que ano? (…) e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário e nem relógio. Eles guardavam na memória os dias da semana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua e era o cheiro do ar, o aspecto das árvores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano. (Veríssimo, 1988, p.21).
Érico Veríssimo nos oferece um exemplo de tempo referenciado na natureza, mas que se inscreve em uma dimensão coletiva e histórica. O tempo subjetivo e individual de Ana Terra – “sempre que me acontece alguma coisa importante está ventando”- entrelaçado ao tempo físico, mensurável e que aponta para um tempo social –“e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário e nem relógio. Eles guardavam na memória os tempos da semana…”
Segundo Edward Thompson (1989) o tempo nas comunidades primitivas relacionava-se com o ciclo do trabalho e tarefas domésticas estabelecido a partir do ritmo cotidiano do trabalho humano. Existem comunidades brasileiras que ainda relacionam o tempo à natureza e a referência é sempre a atmosfera, uma vez, que este elemento é indispensável para o bom andamento das atividades produtivas. Em algumas regiões nordestinas o sertanejo identifica o passar do tempo, em um dia, da seguinte forma:
1 hora : primeiro cantar do galo
2 horas: segundo cantar do galo
3 horas: madrugada alta
4 horas: madrugadinha
5 horas: amanhecer
6 horas: sol de fora
7 horas: uma braça de sol
8 horas: sol alto
9 horas: hora do almoço
10 horas: almoço tarde
11 horas: perto do meio dia
12 horas: pino do sol
13 horas: pender do sol
14 horas: viração da tarde
15 horas: tarde cedo
16 horas: tardinha
17 horas: roda do sol se pôr
18 horas: pôr do sol
19 horas: noitinha
20 horas: boca da noite
21 horas: tarde da noite
22 horas: hora da visagem
23 horas: perto da meia noite
24 horas: meia noite
Thompson traz outros exemplos de povos que medem os intervalos de tempo pelo cozimento do arroz ou “um momento”, referente ao tempo da fritura de uma lagosta. Ou intervalos de tempos equivalentes como o tempo para cozimento de um ovo que requer a duração de uma “avemaria” em voz alta. Também a relação com o tempo dos monges da Birmânia, que levantam ao amanhecer, “cuando hay suficiente luz para ver las venas de las manos”.
O relógio aparece nas sociedades de classes e representa uma ruptura com a noção de tempo das comunidades primitivas ao significar não só uma contagem de tempo, mas uma ordenação das pessoas que estão inseridas numa sucessão de processos, padronizando os diferentes comportamentos, situando-os e avaliando a duração dos mesmos. O tempo é moldado como controle e necessário para o domínio de uma classe social sobre outra. Vários espaços sociais passam a organizar-se a partir de um rígido controle de tempo, como as fábricas, escolas, as próprias residências e os recursos são inúmeros: relógios, sirenes, calendários, agendas, etc.
Constituir novas compreensões temporais, perceber a arbitrariedade das convenções de tempo estabelecidas, questionar o tempo controlado a que estamos submetidos na contemporaneidade, são desafios ao ensino de história. Importante é garantir aos alunos a aprendizagem das mais variadas medidas de tempo do presente e do passado e de vários grupos sociais, a história dos artefatos usados para medir o tempo, a localização dos acontecimentos e sujeitos no tempo, relacionando acontecimentos e sujeitos aos seus contextos históricos, o reconhecimento de permanências e mudanças, e finalmente a possibilidade de estabelecerem múltiplas relações, comparando diferentes épocas e temporalidades.
Conhecer a existência de diversidades na forma de pensar e sentir os tempos: o tempo métrico (relógio, calendário), o tempo da natureza (ciclo da vida, fases da lua, dia e noite, estações do ano…), o tempo geológico (lentas transformações, eras), o tempo das diferentes culturas (cristãos, judeus, muçulmanos), o tempo subjetivo (sentimento de tempo individual) e o ritmo e a ordenação temporal para diferentes pessoas, atividades e instituições (tempo do cozimento dos alimentos, do recreio, da aula, do jogo de futebol,…)
O estudo das multiplicidades das dimensões de tempo não podem faltar: o tempo físico (cronológico), o tempo social (das vivências individuais e coletivas) e o tempo histórico, dimensão histórica onde o tempo é marcado pelas experiências humanas e pelas relações entre presente/passado/futuro.
Para a compreensão das noções de duração (curta, média e longa) devem ser abordadas as permanências e mudanças, as continuidades e descontinuidades, o que é mais antigo, o que é mais atual e o que cada aluno entende por antigo e passado. A noção de sucessão, para a compreensão do tempo, é desenvolvida percebendo que as coisas acontecem uma depois da outra, muito antes, o muito depois, os diferentes ritmos deste suceder, deste tempo seqüencial. A simultaneidade permite ao aluno entender que existem coisas que acontecem ao mesmo tempo e que enquanto se está na escola, a mãe, o pai, os amigos estão fazendo outra coisas ou, ainda, que, enquanto a sua turma participa de uma aula, em outro lugar, outras pessoas podem estar envolvidas numa guerra.
Importante nesse processo é perceber que tipo de representação cada criança faz do tempo, como expressa sua compreensão, principalmente a partir do tempo vivido.A organização de práticas e atividades problematizadoras para a construção das noções temporais significa trabalhar com medidas de tempo da nossa cultura, de outras culturas, tipos diferentes de instrumentos que servem para medir o tempo, bem como medidas de tempo próprias para determinado grupo, palavras e expressões que são marcadores temporais na fala e na escrita. Enfim, expor os alunos num movimento de compreensão histórico-temporal que permita questionamentos sobre cada cultura e momento histórico vivido por aquele povo, grupo ou classe social. Pensar sobre os sentimentos, sobre as necessidades, os imaginários, a visão de futuro, a idéia de povo, as sociedade, as esperanças, as utopias e principalmente nas determinações e escolhas, para que assim se constitua um novo sujeito.

Tudo o que eu posso ver
Essa neblina
Cobrindo o entardecer
Em cada esquina
Tudo o que eu posso ver
Essa fumaça
Cobrindo o entardecer
Em cada vidraça

Mas eu quero te contar os fatos
Eu posso mostrar fatos pra você
É só ter um pouco mais de tato
E ficar claro pra você
Desde a antiguidade
As coisas estão assim, assim
Os homens não são iguais não são
Não são iguais e fim
Daí toda essa história
Daí a História surgiu
Escravo da Babilônia
Trabalhador do Brasil.

Tudo o que eu posso ver
Essa neblina…
…Em cada vidraça

Mas veio o ideário
Da revolução burguesa
E veio o ideário, veio o sonho socialista
Veio a promessa de igualdade e liberdade
Cometas cintilantes que se foram pela noite
Existiram enquanto houver o maior
Daí, é que vem a história
Daí a História surgiu
Escravo da Babilônia
Trabalhador do Brasil.

Do Egito antigo
Na Grécia, e Roma
Da Europa feudal
Do mundo colonial
No mundo industrial
Na URSS stalinista
Em Wall Street
Em Cuba comunista
E no Brasil
E no Brasil…Hein?…

Daí é que vem a história
Daí o homem serviu
Escravo para servo
Trabalhador do Brasil.

Daí é que vem a história
Daí a História surgiu
Escravo da Babilônia
Trabalhador do Brasil.

(Música: Luta de Classes, Samuel Rosa
e Chico Amaral)

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

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Ross, Alistair. Um projeto de história oral em uma escola primária – 37
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Cidade Negra. CD: Sobre todas as forças. Produção Liminha. Rio de Janeiro:
Sony Music Entertainment.


Respostas

  1. vc tem namorado

  2. por que o homen existiu

  3. quem foi que descobriu brasil

  4. Nossa!

  5. Excelente trabalho! Os textos exprimem com muita naturalidade de entendimento do que seja ser sujeito histórico. Parabéns!

  6. Apaixonante este trabalho, parabéns.


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